(ou a guerra, o sono bestializado e a democracia não democrática)
Josemi Medeiros – professor de sociologia
Depois da eleição, uma parte significativa das classes populares retornam aos seus túmulos periféricos, sujos de barro, sem saneamento, saúde ou escolas de qualidade. Retornam para uma noite de sono profundo que durará dois a nos até que sejam acordados novamente ou acionados para cumprirem suas funções de cidadãos conscientes: escolher novos representantes.
Depois da eleição o silencio da democracia volta a ser vivido nas ruas de nossas cidades, sendo interrompido somente pelos gritos dos assaltados, das ambulâncias, ou dos excluídos, enlouquecidos pela fome do corpo e da cabeça.
O silencio de uma democracia que fora para alguns “completada”, legitimada pela ação das classes populares. Silencio este motivado pelos próprios candidatos eleitos, dada a necessidade de calar os que tem fome, os que precisam gritar a fim de tornar público suas misérias e suas necessidades existenciais. Para muitos candidatos eleitos depois da eleição é preciso desviar as atenções do campo político, neutralizar temporariamente a idéia de cidadania participativa, e acionar o botão da cidadania regulada, garantindo direitos parciais, alguns poucos empregos, alguns caixões ou bolsas assistenciais.
Para os que estão a frente do sistema democrático em que vivemos, não é interessante que a população continue cantando as músicas da política, pois caso o façam, podem mais cedo ou mais tarde se interessarem em compreender as notas, identificar novos ritmos, e desejar participar de outras composições como autores, construir novas formas de fazer política, e por que não, mudar algumas realidades que permanecem cristalizadas desde inicio do processo de colonização. Isso com certeza causaria prejuízos aos eleitos. Eleitos estes que depois do período de votação, não mas utilizando as vestimentas da representação popular, passam a defender os interesses das empresas e do capital, seus verdadeiros parceiros e financiadores da compra de votos.
Diante disso, podemos considerar democrática a nossa democracia? Podemos considerá-la um sistema igualitário, se o que observamos nas ruas, instituições e campos de trabalho é a exploração e os processos múltiplos de desigualdades e alienação, de segregação e de pobreza? Se o que temos observado é a aliança entre as classes economicamente dominantes, o governo e a mídia afim de ampliarem os campos de concentração dos segregados, as fronteiras do trabalho precário e do desejo pelo consumo (que tem desmobilizado politicamente as classes populares).
Como considerar democrático um sistema que criminaliza os movimentos sociais e os indivíduos que lutam por seus direitos, e sustenta através da exclusão e exploração de muitos, uma parcela menor da sociedade em seus castelos de mármore e vidro (elevados do chão ou fortificados por muralhas). Parcela esta defendida verdadeiramente pelos que nesses últimos dias caminharam em nossas ruas pedindo nossos votos?
Como considerar democrático um sistema que reconhece os sujeitos como sendo momentaneamente cidadãos, os oferecendo pão, casa, roupas, televisão e lazer (quase sempre vinculados a processos de alienação) menos as ferramentas necessárias a uma cidadania efetiva: a liberdade de pensar e de agir.
Sobre a liberdade de pensar e agir, como podemos considerar o momento do voto como sendo uma ação consciente, se uma parcela significativa da sociedade não tem tido acesso a uma educação politizadora, a uma cultura do participar e do fazer através das próprias mãos? Como podemos pensar em uma participação que esteja relacionada a uma tomada de decisão politizada, se os corpos cansados pelas muitas horas consumidas pelo trabalho, as mentes bestializadas pela industria cultural e a comercialização dos votos tem impedido os sujeitos de serem sujeitos, de escreverem conscientemente suas histórias?
Como podemos considerar igualitária a sociedade ou o sistema se quando caminhamos nas favelas nossas de cada dia, nas suas ruas famintas de direitos, nos deparamos com uma guerra desigual sustentada pela pobreza, pela precariedade da vida e a pela própria violência nas periferias.
Nos deparamos com uma guerra, em que os exploradores, utilizando racionalmente suas armas, fazem uso de aparelhos ideológicos influenciando as formas de pensar e agir dos explorados. Guerra esta em que os primeiros expropriam racionalmente os bens da maioria da população, explorando seu trabalho, e negando seus direitos. Guerra esta em que os explorados, são motivados a destruir a si mesmos, em uma luta interna, roubando e estuprando seus pares; são motivados a adorar seus inimigos, pasmando-se diante da beleza de suas peles protegidas do sol, e de seus cheiros artificiais comprados em outros continentes. Uma guerra de mundos distintos, não declarada, não reconhecida pelos subjugados física e mentalmente. Pelos da mesma forma mutilados.
Guerra esta, cujas baixas (ou mortes) dos excluídos são registradas indiretamente nos centros de emergências dos hospitais, nos resultados dos exames nacionais de educação, nas taxas de analfabetismo, nas vitimas dos crimes, na superlotação das prisões, nas falas despolitizadas, nos sonhos não sonhados ou não realizados pela impossibilidade ou oportunidade de ser.
Depois da eleição, permanecemos silenciados, em meio a guerra e o silencio dos mutilados, dos segregados, dos considerados feios, pobres e vadios. Dos que vivem na própria carne as conseqüências da guerra física e simbólica, da alienação e da expropriação histórica do que se tinha e do que se era (ou do que se pensava ter e ser).
Depois da eleição, nos fazemos miseráveis não apenas por compartilhar a realidade de exclusão dos muitos que conhecemos, mas por permanecer na condição de seres passivos, como se estivéssemos em um deserto, pairando sobre uma nuvem, a deixar que a humanidade permaneça no caminho contrário ao Oasis, que os exploradores construam suas vidas sobre os ossos quebrados e os espíritos ceifados das classes populares.
O que fazer para romper com o nosso silencio bestializado, sustentado pelo desconhecimento da guerra, ou pela omissão dos que tem se limitado a compreender e não desencadear o agir? Como poderíamos multiplicar nossa fala, nossa escrita e nossos ideais coletivos de modo a acordar os que dormem, e a nós mesmos do sono profundo do nosso egoísmo e ignorância destruidora de subjetividades e de mundos?
Nesse cenário uma única certeza nos vem a mente, a de que é preciso acordar desse sono profundo não somente no período da eleições municipais, estaduais ou federais; é preciso acordar mesmo que seja nesta segunda-feira, e não mas dormir o sono dos excluídos.